A violência observada em alguns dos protestos que ocorrem há 12 semanas em Hong Kong, sudeste da China, preocupa brasileiros residentes na China e especialistas na segunda maior economia mundial. Honconguêses estão nas ruas por mais liberdade. O gatilho dos protestos foi uma proposta de lei que permitiria a extradição de Hong Kong para a China continental.
Os movimentos recentes foram também alimentados pela violência policial durante algumas manifestações, pelas demandas de manutenção do modelo mais liberal de governo e até pela exigência de demissão de Carrie Lam, chefe do governo local, mas identificada com Pequim.
“Sentimos muito em ver um lugar que amamos estar tomado por uma violência que não reconhecemos. O que conhecemos de Hong Kong é um lugar tranquilo”, relata à Agência Brasil a empresária brasileira Mariza Moreira, que morou em Hong Kong por sete anos e atualmente reside em Xangai, a 1,2 mil quilômetros de distância.
Gabriel Freitas, que trabalha com importações e exportações na cidade de Shenzhen, na fronteira com Hong Kong, diz que os protestos, que já ocorreram no aeroporto internacional de Hong Kong, afetaram o seu trabalho e de clientes.
“Muitos chineses que usam Hong Kong como hub de negócios [centro de conexões aéreas] começaram a evitar”, conta. “As manifestações perderam o controle e estou evitando pegar voos por lá. Como Hong Kong tem voos mais baratos, acabo perdendo infelizmente essa vantagem”, acrescenta.
“O clima é tenso. A gente está ficando mais com medo”, confirma outra empresária brasileira que mora em Hong Kong há mais de uma década e tem dois filhos adolescentes nascidos na cidade. Nascida em Minas Gerais, ela pede para não se identificar e se angustia com a possibilidade de os conflitos se estenderem e haver maior interferência do governo chinês.
“Eu acho que Pequim não vai ceder. Os protestantes também não. Será que Pequim vai chegar com as tropas? Vão começar a matar as pessoas? Tem várias perguntas que a gente não tem as respostas. Está ficando mais delicado”, lamenta.
O professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC Rio) Paulo Sergio Wrobel não acredita que Pequim envie tropas do Exército para ocupar Hong Kong. Em sua opinião, a repressão dura poderia repercutir contra o governo chinês.
“O custo de uma invasão seria muito alto. A não ser que haja um fato novo. Essas tropas que estão na fronteira [de Shenzhen com Hong Kong] são instrumentos de pressão”, comenta ao citar o movimento militar descrito em rede social pelo presidente norte-americano, Donald Trump, com base no serviço de inteligência americano, e posteriormente exibido pela TV estatal chinesa.
“Existe, além de tudo, uma disputa de narrativa acontecendo dentro e fora da China”, assinala Júlia Rosa, diretora e fundadora da Shūmiàn, uma plataforma na internet criada por sinólogos brasileiros, com informações políticas, econômicas e culturais, sobre a China para a América Latina.
Segundo ela, o governo chinês usa seus veículos de comunicação e a censura para criar posicionamento favorável à repressão da polícia de Hong Kong contra os manifestantes.
“As manifestações que aparecem nas redes chinesas são principalmente contra os protestos. Algumas pessoas afirmam que postagens em apoio aos protestos foram deletados pelas plataformas, dando lugar àquelas de incentivo aos atos da polícia. Apesar de os protestos terem sido majoritariamente pacíficos por parte de manifestantes”, pondera Julia Rosa.
Internamente, a estratégia de comunicação do governo chinês vai ao encontro das aspirações da população que não mora em Hong Kong. “Os chineses, em geral, e os chineses de Pequim, em particular, são muito pró-estabilidade financeira e econômica. Pensam assim: ‘está tudo indo bem. Tem trabalho, tem dinheiro. Para que é importante os direitos humanos e a liberdade de expressão?’”, comenta a empresária mineira que não quer se identificar.
De acordo com a sinóloga Júlia Rosa, os conteúdos fornecidos por Pequim criticam o que seria uma mentalidade colonizada em Hong Kong (de posse britânica até 1997) e, eventualmente, mostram pequenos grupos com bandeiras pró-Reino Unido em manifestações.
“Os grupos nacionalistas ou pró-governo têm acirrado a discussão, criando um ambiente mais hostil para as negociações da guerra comercial, afirmando que os Estados Unidos estão por trás dos protestos”, detalha.
A referência aos EUA não é por acaso, o país está há mais de um ano em guerra comercial com a China. “Os Estados Unidos estão colocando lenha na fogueira. É do interesse do Trump ter mais confusão aqui. A China fica em uma situação mais frágil, os Estados Unidos têm uma vantagem econômica com o lance da guerra comercial”, avalia a empresária mineira que reside em Hong Kong.
Há cerca de 10 dias, o presidente estadunidense indicou que o armistício para as importações chinesas só ocorrerá quando a China resolver os conflitos em Hong Kong. “Milhões de empregos estão sendo perdidos na China para outros países não tarifados. Milhares de empresas estão indo embora. É claro que a China quer fazer um acordo. Deixe-os trabalharem humanamente com Hong Kong primeiro”, escreveu dois dias após ter alertado sobre o movimento das tropas chinesas.
“Muitos viram [a mensagem de Donald Trump] como uma ameaça velada, conectando as duas situações para conseguir concessões na postura chinesa”, comenta Júlia Rosa. A sinóloga ressalta que “Hong Kong está sofrendo com a guerra comercial e com os protestos, afirma-se que a economia está em perigo de recessão”.
“Essa disputa comercial embute um processo mais amplo que uma disputa geoeconômica, geopolítica e estratégica militar entre a única superpotência no mundo e uma potência em crescimento”, acrescenta o professor Paulo Wrobel, destacando que a China precisa de Hong Kong. “Boa parte da atração de capital para a China vem via Hong Kong. Qualquer questão comercial séria entre Estados Unidos e a China afeta Hong Kong”.
De acordo com a Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2018, Hong Kong destinou 8,1% das suas exportações para os EUA.
As expectativas da população mais jovem quanto aos rumos da economia de Hong Kong também compõem o cenário de protestos. “Existe uma concentração de renda clara e as divisões sociais estão presentes no dia a dia. Então, apesar de a motivação principal ser política, o ambiente econômico em que essa juventude se insere também tem um papel”, confirma Júlia Rosa.