Afinal, o meio da América do Sul é Cuiabá ou Chapada dos Guimarães? Leia esta matéria que preparamos especialmente para você entender esta polêmica.
15º36’S, 56º06’O – Centro Geodésico da América do Sul – Praça Moreira Cabral, Cuiabá, Mato Grosso
“Achace esta Villa asentada na parte mais interior da América Austral em altura de quatorze gráos não completos ao Sul da linha do Equador, quase em igoal paralelo com a Bahia de Todos os Santos pella parte oriental e pelo ocidente com a cidade de Lima, capital da Província do Peru, distante huma de outra costa, setecentos e sincoenta léguas que sam as mil e quinhetas que tem de latitude nezta altura este continente, asentada na beira do rio Cuyabá“.
No fim do século 18, José Barbosa de Sá, considerado o primeiro cronista da história de Cuiabá, já registrou uma das maiores particularidades da capital mato-grossense: Cuiabá está no meio da América do Sul.
Pulemos para o século 20. Em 1909, a Comissão Rondon — a histórica expedição que mapeou áreas desconhecidas do Brasil, instalou linhas telegráficas e, no meio do caminho, estabeleceu contato com povos indígenas, demarcou fronteiras, criou um parque nacional e fez toneladas de descobertas para a botânica, a geologia e a zoologia —, calculou com mais exatidão o que se sabia desde o Brasil Colônia. Rondon cravou que o centro geográfico da América do Sul fica no antigo Campo d’Ourique, no centro da cidade, e mandou erguer um pequeno marco no local.
Nos anos 1970, o obelisquinho foi substituído por um outro, mais pomposo. Nessa época, o Exército refez as contas, com tecnologias mais precisas, e confirmou os dados do marechal.
O meio da América do Sul
O Campo d’Ourique é hoje a praça Moreira Cabral, onde fica a Câmara Municipal. Em outros tempos, a área serviu de palco de enforcamentos, execuções e punições a pessoas escravizadas. Por isso, em vez do nome que faz referência à batalha de 1139 em que os portugueses derrotaram os árabes no Alentejo, o Campo d’Ourique era chamado também de Largo da Forca.
Além dos espetáculos sanguinolentos de nosso passado, o Campo também recebeu parques, circos e as touradas cuiabanas. “Os moradores da redondeza tinham convicção que o local era assombrado, e era comum dizer que se ouviam gritos, gemidos e almas penadas passeando pelo largo”, escreveu o geógrafo Pedro Arnaldo Paschoiotto em sua dissertação de mestrado na Universidade Federal de Mato Grosso.
No Dia de Finados a população acendia velas e fazia orações. A criançada costumava fazer peraltagem, ora se escondendo atrás do marco geodésico ora fantasiada, embrulhada em lençóis ou com ‘véus’ pretos e roxos, de suas mães religiosas, assustando as pessoas desavisadas que passavam, ao entardecer.
Com o tempo, o obelisco virou um ícone da cidade. Está na bandeira de Cuiabá, estilizado em verde e amarelo. Também está em verde, sobre fundo amarelo, no escudo do Cuiabá Esporte Clube, time emergente que foi fundado há 20 anos e já está na elite do futebol nacional.
Confusão
Mas a afirmação e a confirmação do centro geodésico teve resistência dentro do estado e levantou algumas polêmicas. O grande mato-grossense Rondon, um dos maiores exploradores do mundo, herói nacional que virou nome de cidade, de estado e até de meridiano (o 52 Oeste, de onde partiu a expedição, se chama Meridiano Rondon), o “general pacifista” que encantou Einstein, que fez Ted Roosevelt ficar viciado em canja e que por pouco não ganhou o Nobel da Paz, teria errado os cálculos?
Na mesma época em que o atual obelisco foi instalado, uma outra afirmação ganhou a força, dizendo que o centro geodésico da América do Sul fica 42 quilômetros a oeste. Ele não fica em Cuiabá, mas no município de Chapada dos Guimarães, conhecido pelo parque nacional homônimo, criado em 1989.
Desde os anos 1940 se falava que um mirante na Chapada era o ponto central da América do Sul. Trinta anos mais tarde, outro peso-pesadíssimo brasileiro, o arquiteto Lúcio Costa, que elaborou o plano diretor de turismo da Chapada, sugeriu explorar esse viés como atrativo local.
O que faz todo sentido se analisarmos do ponto de vista místico-goodvibes-cachoeira. Pode haver outras chapadas, mas só Guimarães fica no centro do continente! É uma energia diferente!
De fato, um baita cartão de visitas turístico. Mas que com o tempo enfraqueceria o argumento de ambas.
Nos anos 2000, a tensão entre as duas cidades aumentou. Estava pegando mal. Imagine você, turista, chegar à Chapada, ver o marco que diz que o centro da América do Sul é lá e, pouco depois, dar de cara com um obelisco no centro de Cuiabá falando a mesma coisa.
Então, em 2007 elas chegaram a um acordo. Chapada dos Guimarães cedeu e trocou a inscrição de seu marco. Desde então, ele diz “Mirante do Centro Geodésico da América do Sul”. Em 2020, um decreto do governo o tornou monumento natural.
O obelisco de Cuiabá agora reina tranquilo, mas ainda tem quem levante dúvidas. É que o IBGE nunca fez um levantamento próprio e a definição de centro geográfico é difícil. Por isso mesmo, o marco do centro geodésico do Brasil, em Tocantins, também é questionado.
A suposta dúvida de Cuiabá não se situar no centro geodésico da América do Sul prende-se ao fato da simples visualização aparente nos mapas. Existem inúmeras formas de projeções cartográficas e cada uma delas é ajustável para uma determinada área do globo terrestre”, argumenta Paschoiotto
Mapas sempre vão favorecer um pedaço em detrimento de outro porque não dá para planificar uma esfera sem distorções.
Em tempos em que muitos monumentos são alvo de polêmica, de questionamentos e revisionismos do papel que se quer dar a certos personagens históricos, o obelisco de Cuiabá se destaca porque não perdeu significado nem “envelheceu mal”. Pelo contrário. É um marco científico que acabou virando, também, um símbolo cultural.
Por: Felipe Van Deursen – UOL