Propriedade de Passos (MG) alcançou essa produtividade após investimento em três frentes.
De carro de boi, a família de João Coelho Paim, ou melhor, Joãozinho Cabo Verde, chegou à Fazenda Santa Luzia, na cidade mineira de Passos, em 1943. O apelido foi dado a Joãozinho e ao irmão Manoel, por volta de 1890, quando eles chegaram à região a pé em busca de serviço. Trabalhadores braçais, vinham de Cabo Verde, cidade do sul de Minas Gerais, distante 133 quilômetros. Após alguns anos, Joãozinho se estabeleceu como pequeno produtor de leite e conseguiu comprar a fazenda graças à venda de dezenas de crias do tourinho zebu Cariá, na época em que essa raça começava a ganhar mercado no Brasil. Vindo da Índia, Cariá custou uma bagatela, porque o antigo dono não reconheceu o potencial do animal que tinha se desenvolvido.
Hoje, a Santa Luzia, nome dado em homenagem à santa que tem um oratório na sede da fazenda desde aquela época, é uma das maiores produtoras de leite do país, com 35.000 litros por dia e faturamento anual de R$ 24 milhões, sendo 25% provenientes da venda de animais. A fazenda deu origem ao Grupo Cabo Verde, um dos grandes do agronegócio, com faturamento anual de R$ 160 milhões. Além do leite, o grupo produz café, milho, soja, suínos e gado de corte, com fazendas em Minas e no Pará.
Um dos segredos da Santa Luzia é o investimento em seleção genética, com adesão ao Programa de Melhoramento Genético da Raça Girolando. A reprodução é 100% FIV (fertilização in vitro). As doadoras de oócitos são as 10% melhores vacas girolando da fazenda e um grupo de matrizes gir de alta produção de leite que vêm da São José do Can Can, gerida pelo patriarca do grupo, José Coelho Vitor, filho de Joãozinho Cabo Verde. O material aspirado das vacas recebe sêmen sexado importado para a formação de embriões meios-sangues e três quartos, que são implantados em barrigas de aluguel. O sistema garante uma grande produção de bezerros, dos quais 87% são fêmeas. A inspiração para o uso da tecnologia vem de longe: na década de 1960, José Coelho foi um dos pioneiros na técnica de inseminação no país.
Além da FIV, o conceito de bem-estar animal, inovações tecnológicas, práticas sustentáveis e o arrojo nos investimentos caracterizam a propriedade de 900 hectares, comandada desde 1990 por Maurício Silveira Coelho, da terceira geração da família “Cabo Verde”. Há quatro anos, o grupo decidiu investir mais na produção de leite, com a compra de três pivôs centrais, dois deles com capacidade para irrigar 65 hectares de pasto e refrescar 750 vacas e o terceiro para a área de recria.
Em 2015, importou uma ordenha giratória, ou carrossel, sistema mais eficiente da atualidade. Somado aos pivôs, o investimento foi de R$ 4 milhões. O equipamento veio da Nova Zelândia, com capacidade para ordenhar 40 vacas a cada dez minutos. “Foi o primeiro carrossel de vaca girolanda do país com alimentação automática. Levamos mais de um mês para fazer a adaptação das vacas, mas a implantação foi um sucesso”, conta Maurício.
Duas vezes por dia, passam pelo carrossel 750 vacas. Enquanto esperam sua vez, elas ficam numa sala lotada de ventiladores gigantes e aspersores de água, usados para refrescar e diminuir o estresse animal. O sistema giratório identifica cada vaca, assim como sua produção. Durante a ordenha, os animais comem ração seca, fornecida de acordo com a média de produção de cada um na semana anterior. Segundo o fazendeiro, o carrossel permite uma ordenha mais rápida, limpa e com uso de apenas três funcionários. Mais 1.000 vacas em lactação passam por outra sala de ordenha tipo espinha de peixe, com leitura automática dos animais, fornecimento de concentrado e sala de refrescamento.
O País tinha 1,8 milhão de produtores de leite na década de 80, hoje não chegam a 700 mil
No total, a Santa Luzia abriga 6 mil animais. O sistema até agora é a criação intensiva a pasto. Em média, cada vaca produz de 27 a 28 litros por dia. A fazenda é dividida em 24 piquetes, e cada um recebe, em média, 150 cabeças. Os animais que não são servidos por pivôs pastam em piquetes sombreados por eucaliptos, que recebem irrigação por malha. A cada 12 horas, ou seja, a cada ordenha, as vacas mudam de piquete.
Em março, a fazenda inaugura um novo sistema. Estão sendo construídos dois compostos de bar e galpões para confinamento de gado, a um custo de R$ 2 milhões. O plano é confinar 500 vacas por vez em dois momentos estressantes para o animal: no pré-parto e nos 60 dias pós-parto. “Com o sistema misto, esperamos aumentar a produção de cada vaca, em média, em 3 litros.”
A produção de leite da Santa Luzia passou de 9,3 milhões de litros, em 2016, para 10,3 milhões, em 2017. O plano é ter 2 mil vacas em lactação e chegar a 12 milhões neste ano (uma média de 40.000 litros por dia). Todo leite é vendido, há dez anos, para a Danone, com contrato bianual que paga o valor do litro pela cotação do Cepea nacional, retroativo a três meses, mais adicional de volume e de qualidade. Isso garante estabilidade ao negócio. Maurício conta que, no segundo semestre do ano passado, o preço do leite registrou uma queda abrupta, após um 2016 muito bom, quando o produtor chegou a receber mais de R$ 2 por litro. “O preço despencou para R$ 1,20, ficando abaixo do custo de produção.”
PREÇO EM QUEDA
Realmente, o ano de 2017 não foi favorável à pecuária leiteira, como mostrou o indicador do leite calculado pelo Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, da Esalq/USP), que recuou 18,2% entre janeiro e novembro. A queda nos preços recebidos e a alta dos custos da ração e do transporte são fatores que desestimulam a atividade, principalmente nas fazendas desprovidas de tecnologia e genética. Em propriedades como a do Grupo Cabo Verde, o efeito da recessão não provocou traumas no caixa.
Segundo a Leite Brasil, associação de produtores sediada em São Paulo, o país chegou a ter 1,8 milhão de produtores na década de 1980. Em 2006, eles eram 1,35 milhão. Já em 2011, o número refluiu para 1,2 milhão de propriedades e continuou diminuindo ao longo dos últimos anos. Segundo Rodrigo Alvim, que preside a Comissão Nacional de Pecuária de Leite da Confederação Nacional de Pecuária do Brasil (CNA), hoje eles não chegam a 700 mil.
Na contramão, as fazendas que se modernizam e ganham produtividade são responsáveis por cerca de 80% do leite produzido no país, ou seja, a concentração aumentou. Em 2017, o volume captado em todo o território nacional deve somar 34 bilhões de litros, um pouco acima dos 33,62 bilhões de litros de 2016 e menor que os 35 bilhões de litros de 2015.
“Infelizmente, os pequenos e os produtores informais estão abandonando o setor”, lamenta Rosangela Zoccal, pesquisadora da Embrapa Gado de Leite, de Juiz de Fora (MG), referência mundial em pesquisa para gado de leite de clima tropical. Segundo Rosangela, dois fatores, fundamentalmente, colocam à margem os pecuaristas menos competitivos. “O controle de preços por parte das indústrias prejudica o pequeno. Elas preferem recolher 1.000 litros de leite em determinada fazenda a comprar 50 ou 100 litros de outra menor”, diz. E, como a coleta é a granel, o transporte do leite é incorporado aos custos. Assim, tanto o grande como o pequeno têm gastos iguais, afirma Rosangela.
A pesquisadora informa que a desistência foi acentuada nos anos de 2015 e 2016. “Os custos de produção saltaram ante os preços pagos ao produtor, que foi forçado a desistir.” Mas ela faz uma colocação importante: louva os programas da Embrapa, como o Balde Cheio, que levam eficiência às fazendas e conseguem inserir o produtor de menor porte no mercado. Rodrigo Alvim concorda: “Em Minas Gerais, por exemplo, maior produtor de leite do Brasil, pelo menos 2.500 pecuaristas participam do Balde Cheio e foram incorporados ao mercado. Ganharam eficiência”.
Rodrigo faz uma observação: o médio produtor está ficando à margem da pecuária. “O grande produz em escala e fatura alto. Já o médio enfrenta mais dificuldades e não consegue fechar as contas. Ele tem despesas com mão de obra, transporte, impostos, etc.”
De acordo com ele, o pequeno criador tem mais flexibilidade do que o grande e o médio. “A maioria usa a mão de obra familiar.” Para este ano, o setor espera recuperação principalmente graças à reação da economia, que deverá aumentar o consumo interno e possibilitar a valorização dos preços ao produtor. É importante lembrar que quase toda a produção brasileira é consumida aqui dentro. A exportação é insignificante.
Um galpão com sacos plásticos pendurados no teto e um rádio tocando música em alto volume guarda um dos segredos do sucesso da Santa Luzia, em Passos. No local, funciona um centro de treinamento de girolando, ou, traduzindo, um centro de doma da raça. O professor é José Mariano, que trabalha há 59 anos na fazenda e há cinco assumiu o novo cargo. A cada semana, ele amansa 15 novilhas. Usa no processo cordas e um “cotonete” (bastão longo com panos na ponta) para acariciar e coçar o animal e as mãos. O objetivo é que as vacas se acostumem com a lida do homem e com situações estressantes.
Maurício conta que a inspiração para a escolinha veio da necessidade de domar os animais para venda em leilão. “Após tentativas e erros, adotamos o conceito de bem-estar animal em todos os setores, baseados nas ideias da americana Temple Grandin. Nosso objetivo inicial na ordenha era tirar 100% a ocitocina (hormônio usado para liberar mais rapidamente o leite da vaca), mas, com as vacas mansas, conseguimos também reduzir muitas perdas em todo o processo.”
Os 80 funcionários da fazenda, que tem baixíssima rotatividade, são treinados em bem-estar animal. Duas vezes por ano, eles passam por curso de reciclagem. No bezerreiro, com capacidade para 500 animais, chama a atenção a atitude de Marluce Alves Pereira, responsável pelo setor há cinco anos.
Na maternidade, os filhotes também recebem o carinho do tratador Marco Paulo dos Santos, membro da terceira geração da família que trabalha na fazenda. Além dele, mais sete irmãos são funcionários da Santa Luzia. Valdenir Castro Soares, gerente há 12 anos, diz que a equipe de funcionários é como um time das antigas, “daqueles que jogam pela camisa.”
Fonte: revista Globo Rural.