Apesar da caça aos animais, que é permitida, praga continua sem controle e pode gerar problema sanitário
O fazendeiro Amarildo Bizinoto investiu durante anos na produção de milho, soja e sorgo na região oeste de Minas Gerais. Venceu percalços frequentes e comuns à agricultura: anos de secas, anos de preços baixos dos grãos, anos de chuvas devastadoras de granizo. Mas recentemente se viu diante de um adversário ao qual teve de se render.
“Tive de parar de plantar milho. Já cheguei a ter mil hectares de milho, só que ficou inviável”, disse ele na semana passada na sua fazenda no município de Sacramento (MG). O que forçou Bizinoto, de 51 anos – 33 deles investindo no campo – a abandonar a cultura de milho em suas terras foram os javalis. “Eles entram nas plantações em manadas; já tive muito prejuízo com javali”.
O animal é o pesadelo de produtores de diversos Estados, do Rio Grande do Sul à Bahia. Está expandindo sua presença por áreas onde nunca tinha pisado, causando prejuízos em pequenos sítios e em grandes fazendas e elevando gastos de produção. Em algumas áreas, a opção dos agricultores – como Bizinoto – tem sido simplesmente desistir do milho, um dos alimentos favoritos do animal.
Assim como ocorre em outros países afetados pela disseminação dos javalis, o Brasil permite desde 2013 a caça como forma de controle. A prática costuma ser alvo de críticas de grupos e pessoas engajados na defesa do bem-estar animal.
Mesmo caçado aos milhares todos os anos com armas de fogo, lanças, cachorros e armadilhas, o javali e seus cruzamentos com porcos, os chamados javaporcos, se proliferam num ritmo acelerado e continuam sendo motivo de preocupação no campo pelos estragos que causam em plantações e áreas de nascentes de rios.
Há ainda outro e mais complexo problema associado ao animal: o fato de serem potenciais vetores de transmissão dos vírus da peste suína e da febre aftosa.
Um estudo recente coordenado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e liderado pela zootecnista Ana Lígia Lenat apontou que, em um cenário extremo em que os vírus da aftosa ou da peste suína clássica venham a atingir a população de javalis e javaporcos no Brasil, e a partir deles se dissemine pelos rebanhos bovino e suíno, os prejuízos em três anos seriam de R$ 52 bilhões.
Não há nenhuma informação, no entanto, de javalis ou javaporcos contaminados com esses vírus no país. O que há é um cenário de alerta e os danos já contabilizados por produtores rurais e centenas de cidades.
Sacramento é uma delas. Com 27 mil habitantes e economia baseada no campo, a cidade viu uma mudança em seu perfil rural nos últimos anos. Estimativa do sindicato dos produtores rurais da cidade dá conta que, alguns atrás, havia entre 50 a 60 produtores comerciais de milho na região e hoje, são cinco ou seis. Muitos produtores passaram a gastar mais com cercas elétricas para proteger suas lavouras de milho e soja – também afetadas pelos javalis.
O que se passa nesta pequena cidade de Minas é o mesmo que se vê em fazendas em São Paulo e também na região Sul. De acordo com Enori Barbieri, vice-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Santa Catarina (Faesc), os javalis são responsáveis por parte da redução do plantio de milho no Estado.
“Aqui no Mato Grosso a situação é calamitosa”, afirma Antônio Galvan, presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Mato Grosso (Aprosoja MT). Segundo ele, o que mais preocupa ainda são as queixadas, um tipo de porco do mato. “Mas o javali e as misturas dele já estão entrando e estamos vendo esses animais em algumas regiões”, diz Galvan.
Gilmar Ogawa, assessor da presidência da Federação da Agricultura e Pecuária de São Paulo, diz que além dos estragos nas lavouras e nas nascentes, produtores têm medo de ataques do animal. “Temos reclamações sobre a presença desse bicho em praticamente todo o Estado. Os produtores têm medo. Não podem mais deixar crianças irem a um lago sozinhas em regiões onde javalis”, afirma ele.
Os javalis e seus cruzamentos são onívoros: se alimentam principalmente de milho, mas comem outros grãos, tubérculos, aves e até ovelhas e bezerros recém-nascidos. O javali – cujo nome científico é Sus scrofa – é uma espécie de porco selvagem, com origem na Europa, Ásia e norte da África.
Segundo dados compilados pelo Plano Nacional de Prevenção, Controle e Monitoramento do Javali – um documento produzido em 2017 pelos Ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura – a primeira introdução do animal na América do Sul se deu entre 1904 e 1906, pela Argentina. A caça e a criação para o corte teriam motivado essa introdução.
Do Uruguai esses animais se disseminaram pelo Brasil, sobretudo, a partir dos anos 1990. Também foram trazidos por criadores para produção de carne, para caça esportiva e para zoológicos.
Nos anos seguintes, se espalharam e passaram a ter vida selvagem cruzando com porcos do mato ou com porcos domésticos. São três a quatro crias por ano, cada uma com sete a oito filhotes. Alguns mantêm o aspecto mais marcado dos javalis puros, com focinhos compridos e presas longas para fora; outros se assemelham mais a porcos. Podem pesar 300 quilos.
O plano de prevenção mostra que, em 2005, os javalis eram vistos em cerca de 50 municípios do país; entre 2007 e 2008 já haviam chegado a 100 cidades; em 2010 em cerca de 300 e em 2016, 600.
Os javalis são considerados animais nocivos e invasores. No Brasil, sua caça é permitida como meio de controle da população desde 2013. A caça também é usada nos EUA, Austrália e outros países. No Brasil, fazendeiros têm dois caminhos: obter licenças no Ibama, Exército e Polícia Federal para fazerem o abate e para portarem armas; o outro caminho é recorrer a caçadores habilitados e autorizados. “É um hobby caro que nós temos”, afirma Júlio César Ferreira, caçador autorizado de Sacramento. Ele e outro caçador, Adriano Lima, calculam que, juntos, já abateram mais de 300 javalis desde o começo deste ano.
Dados do Ibama mostram que entre abril e setembro, 2,8 mil javalis foram abatidos em Santa Catarina; 2,2 mil em São Paulo; 1,7 mil em Minas Gerais; 1,2 mil no Rio Grande do Sul; e 1,1 mil no Paraná. Em outros Estados, as marcas foram menos expressivas. O método mais usado tem sido o de perseguição com cães. Os números representam os abates regularmente notificados ao Ibama.
Mas Daniel Terra, presidente da Associação Nacional de Caça e Conservação, diz que os números oficiais são subestimados. “A gente estima que para cada pessoa que se cadastra no Ibama há outros 15 a 20 caçadores não cadastrados”, afirma. Segundo ele, há 40 mil cadastrados. Burocracia, custos da legalização e desconhecimento explicariam ainda a grande informalidade na atividade da caça do javali no Brasil.
“No Texas, nos EUA, empresas fazem o abate de helicóptero; na Austrália, por envenenamento”, diz Fábio Avancini Rodrigues, diretor vice-presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul. O governo federal e técnicos que estudam o tema consideram que não é factível acabar com os javalis no Brasil. Mas sim controlar o avanço de sua população. “É uma praga”, diz Rodrigues.
Por Marcos de Moura/ Valor Econômico