O novo governo começou com vários assuntos econômicos candidatos a se tornarem polêmicos, para a felicidade dos jornalistas.
Estados e municípios estão quebrados e os novos governadores exigem financiamento das dívidas e melhor divisão da arrecadação tributária.
Eles têm razão. Afinal, a Constituição em vigor descentralizou a execução de uma série de obrigações, mas manteve na esfera da União a maior parte do bolo. Outro assunto candidato era o Mercosul. Boa parte dos empresários brasileiros só vê desvantagens do Brasil se submeter a regras de tarifas externas unificadas, praticadas pelos países participantes deste bloco. Preferem o modelo do Chile, país ágil em estabelecer acordos comerciais bilaterais, ou seja, eles negociam com cada país isoladamente as bases de suas relações.
Dois assuntos, todavia, despontavam como candidatos mais fortes na agenda econômica: privatização e previdência. A privatização de estatais consumiu boa parte das discussões na campanha eleitoral em 2018, gerando inflamados discursos. Já a reforma da previdência pública vem ocupando o centro das atenções desde o início do Governo Temer, levando pessoas a anteciparem seus pedidos de aposentadoria, mesmo aqueles que ainda se consideram aptos a trabalhar, por temerem que novas regras os impeçam de usufruir deste benefício com a idade que hoje possuem. Para ser sincero, minha aposta é que este seria o assunto campeão. Mas, para surpresa geral, antes de completar quarenta dias de Governo, o assunto que se tornou o mais polêmico foi o leite.
Quem assume o cargo de ministro ou ministra da Agricultura sabe que, durante o tempo que ali permanecer, irá conviver todo dia com o leite e seus percalços. No período das chuvas, a pressão é dos produtores e deputados, que reclamam por preços pouco remuneradores. Já no período da seca, quem pressiona são os consumidores e a equipe econômica, sempre de olho na taxa de inflação. Desta vez, a polêmica veio com o fim de cobrança de tarifas extras aplicadas em leite e derivados importados da Europa e da Nova Zelândia. Isso arrebatou a grande mídia. Até quem nada entende do setor pôs lenha na fogueira.
O jornalista Fernando Gabeira, mineiro naturalizado carioca, e o economista Marcos Lisboa, carioca naturalizado paulista, até esses dois articulistas da grande imprensa afirmaram que o leite estava colocando em choque as posições liberais e protecionistas, gerando conflito entre os modernos e os retrógrados. No final, venceu “a turma do atraso”, os defensores de privilégios, os produtores do leite.
Para viver em sociedade, o homem criou duas instituições fundamentais: o mercado e o Estado. É por meio da interação das habilidades pessoais que trocamos entre nós produtos e serviços que satisfazem as nossas necessidades. Mas, como esta estratégia não é perfeita, existe o Estado para cobrir as perigosas falhas de mercado. Na trajetória humana pós-industrial, ficou evidente que não é possível uma sociedade viver somente com o mercado, sem Estado, ou somente com o Estado, sem o mercado, pois ambas instituições se completam.
Quem melhor deu argumentos para a construção da visão liberal na economia foi Adam Smith, que entendeu as bases da Revolução Industrial, ocorrida há menos de 2,5 séculos e que mudou nossa maneira de viver e de pensar. Para ele ficou claro que os indivíduos precisam ter liberdade de escolher o que, quando e como produzir e consumir. Até então, o Estado controlava a vida econômica das pessoas. Mas, foi David Ricardo quem expandiu esta visão para a relação entre países, argumentando que o livre comércio é o único caminho sólido para um país se desenvolver. Simplificando, exercitar o liberalismo entre pessoas levaria à riqueza da nação. Já o liberalismo nas relações comerciais levaria à riqueza das nações.
Ambos autores são do Reino Unido, berço da industrialização e do pensamento liberal. Pois, foi no Reino Unido que surgiu a política explícita de controlar o mercado de leite, com tabelamento de preços. Mais que isso, Churchill estatizou parte do mercado, ao eleger o carteiro e o leiteiro como os dois símbolos para manter a imagem de Estado operante, numa Inglaterra destruída pela Segunda Grande Guerra. Estes foram os únicos dois serviços mantidos intactos pelo Governo.
Mas, até hoje os Estados Unidos aplicam preços discriminados para o mercado de leite. Já a Europa abusa de políticas de intervenção, visando proteger os seus mercados. E na Ásia, toda a aquisição de leite sempre exige longa e controlada negociação estatal.
Portanto, o mercado de leite é resultante de um somatório de intervenções, traduzidas em subsídios e proteção. O preço internacional do leite é naturalmente artificial, por mais estranho que possa parecer estas duas palavras antagônicas juntas: naturalmente artificial! É verdade que precisamos aumentar a produtividade para melhorar a competitividade. Sem isso, não há futuro. Mas, comércio exterior não permite ingenuidade.
Não existe o leite liberal!
Por: Paulo do Carmo Martins