Até a vigência da Lei 14.112/2020, para que um produtor rural pessoa física pudesse instrumentalizar seu pedido de recuperação judicial, com base nos débitos vinculados à sua atividade, fundamentava-se o pleito apenas em decisões judiciais, inclusive com posicionamento unânime do STJ.
Em julgamento realizado em outubro de 2022, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, depois de várias decisões monocráticas (sempre favoráveis ao agropecuarista), delimitou no Recurso Repetitivo nº 1.905.573 – MT, que ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro.
Ou seja, sacramentou a Corte Superior que, para que um produtor rural (pessoa física) pedisse recuperação judicial, deveria, antes do protocolo da petição inicial, formalizar registro de um CNPJ, para atender à exegese de um status empresarial.
Ainda que não tivesse nenhuma dívida no referido CNPJ, constituído na vasta maioria dos casos apenas para instrumentalizar o requerimento da RJ, está obrigado criar a aludida “empresa”.
Benefícios e ônus da Recuperação Judicial
Tal interpretação se deu, dentre outras razões, porque a inscrição do produtor rural na Junta Comercial, em vez de “transformá-lo” em empresário, acarreta sua sujeição ao regime empresarial, descortinando-se, então, uma série de benefícios e ônus de titularidade apenas para aqueles que se registram na forma preconizada no artigo 968 do CC/2002.
Muito certamente, considerou-se que, em razão de a Lei 11.101/05 especificar, em seu artigo 1º, que seus destinatários eram exclusivamente empresários e empresas em dificuldade financeira, também se adotou pelo registro mercantil do produtor para que, com a condição de “empresário”, nos moldes do artigo 967, do Código Civil, propusesse sua RJ.
Em síntese, mesmo não sendo obrigado a ter uma pessoa jurídica para operar cotidianamente, o produtor rural se vê obrigado a fazê-lo, exclusivamente para apresentar um pedido de recuperação judicial e, por outros documentos, comprovava o exercício da atividade pelo biênio estabelecido no artigo 48, caput, da LFR.
Dispositivos incluídos
Com o advento da Lei 14.112/2020, foram incluídos relevantes dispositivos na Lei 11.101/2005, especialmente a oportunizar o produtor rural, agora de forma positivada, a pleitear sua recuperação.
Com relação ao supracitado artigo 48, foram inseridas duas disposições acerca de devedor da área agropecuária: a pessoa jurídica e, de forma bem objetiva, a pessoa física.
O parágrafo 3º, do artigo 48, define os meios de comprovação do biênio legal para empresas rurais. Já o parágrafo 4º, do mesmo dispositivo, prevê que a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no LCDPR, registros contábeis que venham a substituí-lo, e pela declaração de IRPF, além da documentação do artigo 51, da LFR.
Salutar, para fins de elucidação, transcrever o dispositivo legal:
“Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente:
(…)
§ 2º. No caso de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo por meio da Escrituração Contábil Fiscal (ECF), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir a ECF, entregue tempestivamente.
§ 3º. Para a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial, todos entregues tempestivamente.”
Não obstante, o Estatuto da Terra, em seu artigo 4º, VI, define:
“Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se:
(…)
VI – ‘Empresa Rural’ é o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural, dentro de condição de rendimento econômico da região em que se situe e que explore área mínima agricultável do imóvel segundo padrões fixados, pública e previamente, pelo Poder Executivo. Para esse fim, equiparam-se às áreas cultivadas, as pastagens, as matas naturais e artificiais e as áreas ocupadas com benfeitorias;:
Ou seja, na própria legislação já consta a expressão “pessoa física” e a respectiva documentação comprobatória, diferenciando-a totalmente da exegese da pessoa jurídica, mormente se tratando da mesma área de atuação.
Tal leitura leva-se à compreensão de que a exigência do STJ, de que o produtor rural pessoa física deveria formalizar seu registro mercantil para requer a recuperação judicia, pode não se mostrar necessária, uma vez que a própria mudança legislativa traz claramente a previsão da pessoa física, bem como sua documentação.
Acredita-se que tal lacuna reforça, de forma legal, a anterior criação jurisprudencial de que a única pessoa física passível de propor uma recuperação judicial é o homem do campo.
Não obstante, a exigência do registro mercantil para o produtor rural propenso a ser recuperando, na prática, sempre se mostrou confusa e burocrática, a iniciar-se pela modalidade empresarial.
Não há, em nenhum julgado consultado pelos redatores deste artigo, a descrição sobre qual forma de “empresa” o produtor rural deve constituir para que proponha uma recuperação judicial. Portanto, parte-se da premissa que, sendo uma empresário individual, sociedade unipessoal, MEI, sociedade limitada, ou outra que não proibida para um único sócio, é plenamente possível.
Os entraves burocráticos e despesas para a criação do CNPJ em si também são consideráveis. Ao menos, são três órgãos públicos que necessitam dar o aval para início da atividade: Prefeitura, Junta Comercial e Receita Federal, cada qual com suas taxas — sem contar os honorários do contador.
Após sua constituição, como ocorre na maioria esmagadora dos produtores que entram em recuperação judicial, estes não utilizam o CNPJ em suas operações, criando mais empecilhos, a exemplo de possível baixa do registro empresarial por ausência de declarações fiscais, podendo ensejar até penalidades pecuniárias e/ou procedimentos administrativos.
Com o CPF vinculado a um CNPJ, há casos em que credores e/ou órgãos públicos, não atentos ao direito da insolvência, desconfiam da criação de uma “empresa” às vésperas de uma recuperação judicial, numa hipotética fraude empresarial.
Toda a documentação estabelecida nos artigos 48 e 51, da Lei 11.101/05, que acompanha o pedido inicial, é relativa ao CPF, bem como todos os documentos elaborados e entregues ao administrador judicial e ao Juízo, no curso do feito recuperacional, também são relativos à pessoa física, e não ao CNPJ recém criado.
Por sua vez, o Enunciado 202, da III Jornada de Direito Civil, prevê que, formalizando o registro empresarial na Junta Comercial, o produtor rural estará submetido ao regime empresarial.
Só que no caso em questão, a própria Lei 14.112/2020 já esclareceu perfeitamente que a recuperação judicial pode ser pleiteada por pessoa física, bastante apresentar os documentos previstos no artigo 48, § 3º, e 51, adequados ao caso.
Não é demais reforçar que toda a documentação do artigo 48, § 3º, se refere a operações realizadas pela pessoa física, bem como o STJ já reconheceu que todo o passivo constituído no CPF é submetido à recuperação judicial, enfatizando que a criação de um CNPJ pode ser dispensada.
Até a consolidação jurisprudencial, o STJ isentava a inscrição mercantil do produtor rural pelo biênio exigido na Lei 11.101/05. Só que, com a mudança legal, compreende-se que a própria inscrição se mostra desnecessária.
Assim, salvo melhor juízo, é compreensível que o prévio registro mercantil, como requisito para pedido de recuperação judicial por produtor rural, se tornou desnecessário, diante da expressa previsão do artigo 48, § 3º, da lei 14.112/2020, uma vez que trouxe o regramento direcionado ao devedor rural pessoa física, desobrigando-o a promover o registro mercantil.
João Tito S. Cademartori Neto é advogado especialista em reestruturação e recuperação judicial, pós-graduado em direito empresarial e direito civil pela PUC/PR e sócio do escritório Lock Advogados.