O Brasil apresenta escassas informações sobre a qualidade da carne, como também carência de avaliações sistemáticas sobre a satisfação do consumidor. Além disso, não há avaliações conclusas sobre as possíveis variações nos atributos organolépticos da carne, em função de época do ano, raça, sexo e sistema de produção utilizado entre outros fatores.
Há informações, sem qualquer tipo de comprovação estatística, de que as reclamações sobre o sabor e aroma da carne de bovinos aumentam no final da entressafra. Muitos têm relacionado esta alteração no sabor à maior oferta de animais confinados suplementados com ingredientes da ração utilizados durante a seca. Uma das primeiras vítimas desta desconfiança é a utilização, nos confinamentos, do caroço de algodão, transformando-se em um “mito” muito difundido em várias esferas da indústria de gado de corte. Fato que, se comprovado cientificamente, seu uso seria abolido nas dietas dos confinamentos nacionais.
A ASSOCON (Associação Nacional dos Confinadores) colocou esta questão em pauta e demandou a várias universidades e centros de pesquisa que conduzissem pesquisas neste sentido. Foram contactados inúmeros grupos de pesquisa no país além de nos colocarmos a disposição para auxiliar no desenvolvimento dos projetos de pesquisa. Para nossa surpresa, a maioria dos grupos de pesquisa na área de qualidade de carne aparentemente não quiseram desenvolver pesquisas sérias, com poder estatístico capaz de comprovar ou rejeitar a hipótese de que o caroço de algodão é capaz de alterar o sabor da carne.
Mas algumas pesquisas foram conduzidas. Vejam abaixo:
1) Projeto EMBRAPA realizado em 2006 – neste experimento, conduzido pela Embrapa Gado de Corte em Campo Grande/MS (Tabela 1), o caroço de algodão não alterou o sabor da carne. Foram confinados 50 animais de vários grupos genéticos por um período de 170 dias, divididos em dois grupos, ambos com dietas isoprotéicas e isoenergéticas. Grupo 1- Oferta de caroço de algodão na dieta (9,5%da matéria seca total da dieta) e Grupo 2- sem oferta de caroço de algodão na dieta. “O painel sensorial não detectou diferenças significativas entre as carnes para o atributo sabor”, diz o pesquisador Sérgio Raposo de Medeiros. O ponto mais positivo deste experimento foi o longo período de suplementação com caroço de algodão (170 dias).
2) Em 2008, Domingos Pesce, estudando a influência do caroço de algodão (Tabela 1) nas características da carne, não encontrou alteração no sabor da carne de novilhos Nelores castrados com a inclusão de até 20% caroço de algodão na dieta (20% da matéria seca total consumida) durante 81 dias. Este projeto é interessante porque a inclusão de 20% é superior ao recomendado pelos nutricionistas, pois neste nível de inclusão o teor de gordura da dieta é relativamente elevado e pode causar reduções de desempenho. Ainda assim não se detectou alterações organolépticas na carne
Com base nestes resultados, em 2009, foi conduzido um experimento por um de nós (Dorival Costa) testando quantidades crescentes de caroço de algodão na dieta de bovinos Nelore inteiros, sendo níveis de 0; 14; 28 e 34 % da MS da dieta total. Após 91 dias de alimentação, os animais foram abatidos e foi conduzido teste sensorial com provadores treinados (Figura 1), para verificar a alteração do aroma e sabor no produto final. Pela primeira vez, foi observada alteração no aroma, mas isto só ocorreu quando o nível de inclusão de caroço de algodão chegou a 28% da MS da dieta total. Já o sabor da carne foi alterado apenas quando a inclusão chegou a 34% MS. Nestes níveis o ganho de peso foi afetado negativamente, com aumento do custo de produção da carne.
Neste experimento, o painel sensorial descreveu o sabor estranho como “sabor semelhante ao do algodão”. Entretanto, as reclamações de consumidores no segundo semestre do ano são geralmente descritas como “sabor semelhante ao de carne de fígado”.
DISCUSSÃO
Dietas dos confinamentos costumam ter entre 0 e 20% de caroço de algodão na matéria seca total. Quando utilizado acima dessa faixa, a quantidade de lipídeos e fibra da dieta fica elevada, ocasionando redução do consumo da ração, conseqüentemente o ganho de peso e o acabamento de carcaça dos novilhos são afetados negativamente.
Não há ainda documentação científica nacional ou internacional de que o caroço de algodão possa afetar a qualidade da carne bovina. Pelo menos nos níveis recomendados e utilizados por nutricionistas e fábricas de rações.
O único projeto que identifica alteração no sabor na carne com o uso do caroço de algodão na dieta dos animais, apenas em níveis muito elevados, parece ser qualitativamente diferente do sugerido nas reclamações anedoctais disseminadas na indústria.
Parece existir um fator individual em que apenas alguns animais têm a capacidade de desenvolver esse sabor desagradável. Isto é demonstrado pelo coeficiente de variação do problema. É comum em ensaios como estes que 1 animal entre 10 avaliados apresente o problema, apesar de todo o lote receber a mesma dieta.
Pós-porteira: outro fator muito importante na avaliação da carne produzida no segundo semestre do ano é a questão da armazenagem. É conhecido o fato de que muitas churrascarias e casas de carne estocam carne, adquirindo-a em junho-agosto para comercializá-la no período final da entressafra (outubro-novembro). É, portanto, muito provável que o período médio de armazenagem da carne aumente no segundo semestre, o que pode explicar parte dos problemas encontrados. Além da conservação da cadeia do frio de forma homogênea e permanente.
Acredita-se que exista uma interação entre a origem da carne e a forma de armazenamento sobre as características organolépticas da carne. Ou seja, é aceitável sugerir que quando carnes de certas origens são armazenadas inadequadamente por períodos prolongados, tenham maior probabilidade de apresentar problemas de rancificação ou de outros “off-flavors” como o “sabor de carne de fígado” mencionado.
CONCLUSÃO
Não há nenhum dado nacional ou internacional que demonstre cientificamente uma correlação entre o uso de caroço de algodão nas dietas sobre atributo sabor da carne bovina.
Similarmente, não há sequer algum levantamento estatístico que demonstre que a maior proporção de “off-flavors” esteja relacionada às carnes provenientes do confinamento.
Infelizmente comentários e suposições sem embasamento técnico, influenciam negativamente o desenvolvimento do setor. Este tipo de comportamento é pouco profissional, desestimula a pesquisa séria, causa sérios prejuízos à credibilidade tanto da carne bovina quanto do sistema de pesquisa nacional.
É preciso aprofundar as pesquisar, coletar dados que gerem coeficientes de variações aceitáveis, fazer levantamentos das reclamações com o concomitante rastreamento da carne com problemas. Somente assim, respostas poderão ser encontradas.
Veja aqui a apresentação na íntegra.
Por:
Dr. Dorival Pereira Borges da Costa
Possui graduação em Zootecnia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2005), mestrado em Zootecnia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2006) e doutorado em Zootecnia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2009). Atualmente é professor Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso. Tem experiência na área de Zootecnia, com ênfase em Alimentação e Nutrição Animal. Atua também na área de Gestão e Liderança Universitária.