Estudo realizado no Pará por cientistas de 18 instituições internacionais, entre as quais 11 brasileiras, todas integrantes do consórcio científico Rede Amazônia Sustentável (RAS), mostra que a degradação no interior de uma floresta causada por atividade humana pode ter tanta importância na geração de perdas da biodiversidade tropical quanto o desmatamento.
O trabalho “Anthropogenic disturbance in tropical forests can double biodiversity loss from deforestation” (Perturbação antropogênica em florestas tropicais pode dobrar a perda da biodiversidade por desmatamento) foi publicado na revista Nature. Pesquisadores consideram que ele oferece subsídios para fortalecer o Código Florestal e aperfeiçoar as políticas públicas.
Os cientistas participantes do estudo mediram o impacto geral das alterações florestais (degradação florestal) mais comuns causadas por ação humana, entre elas os incêndios florestais, a exploração madeireira ilegal e a fragmentação de florestas remanescentes, em 1.538 espécies de árvores, 460 de aves e 156 de besouros. A pesquisa foi feita nos últimos seis anos tanto no campo, em 371 áreas espalhadas por três milhões de hectares nos municípios de Paragominas e Santarém (nordeste e oeste do Pará, respectivamente), como em laboratório de análise de imagens de satélite.
Os dados avaliados permitiram as primeiras comparações já feitas entre a perda de espécies em áreas florestais remanescentes sob distúrbios pela ação do homem e a decorrente da perda de habitat pelo desmatamento (corte raso). “O estudo concluiu que, no Pará, a perda de biodiversidade estimada com base no estado atual da degradação florestal é equivalente ao que se perdeu por desmatamento desde 1988”, relata a pesquisadora Joice Ferreira da Embrapa Amazônia Oriental (PA), uma das autoras do trabalho.
A descoberta dessa equivalência levou os cientistas a constatarem que a biodiversidade perdida no Pará é o dobro do que se imaginava. “Levando em conta a estimativa da perda de espécies por degradação, é como se outros quase 140 mil quilômetros quadrados de floresta intacta tivessem sido derrubados”, compara a pesquisadora, referindo-se à taxa de desmatamento desde 1988 no Pará disponibilizada pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Essa mesma estimativa também revela que as perdas de biodiversidade por degradação só no Pará são maiores do que as derivadas do desmatamento na Amazônia inteira na última década (2006-2015).
Com respeito à quantificação de área equivalente de desmatamento, o engenheiro florestal Giampaolo Pellegrino, pesquisador e presidente do Portfólio de Mudanças Climáticas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, que não participou do estudo, mas conheceu seus resultados, pondera: “justamente por seu ineditismo e por uma primeira aproximação, que à primeira vista poderia parecer superestimada, acredito que, como de praxe, essas estimativas ainda serão debatidas pela comunidade científica e poderão ser confirmadas ou ajustadas em estudos mais específicos, onde algumas premissas adotadas no atual estudo, a exemplo da distribuição das áreas de amostragem, e sua extrapolação para todo o Pará possam ser revisitadas”.
Por outro lado, Pellegrino ressalta que o trabalho traz alertas importantes sobre a perda da biodiversidade brasileira e destaca a necessidade de políticas públicas para conter esse problema.
Nesse sentido, a autora Joice Ferreira destaca que “o resultado da pesquisa pode vir a subsidiar tecnicamente o desenvolvimento de políticas públicas voltadas à conservação e restauração de florestas, pois oferece evidências convincentes de que as iniciativas de conservação amazônica também precisam levar em conta a redução de perturbações florestais”.
Ao enfatizar a importância do monitoramento em estratégias de redução de perdas, o pesquisador Luiz Aragão, do Inpe, lembra que o Brasil conseguiu reduzir seu desmatamento em cerca de 80% como resultado do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). “O próximo passo é avançar na quantificação da extensão e impactos da degradação florestal tendo em vista o resguardo da nossa biodiversidade, estoques de carbono e serviços ecossistêmicos”, antevê Aragão.
Efeitos das atividades humanas
O estudo demonstrou que a intervenção humana provoca significativas perdas de biodiversidade que vão além dos danos mais visíveis causados pela derrubada de árvores.
A pesquisadora Joice Ferreira ressalta outro aspecto da importância de se controlar a degradação florestal. “O valor da conservação cai se a floresta sofre perturbações como as estudadas. Além do efeito direto da perturbação em si, perde-se biodiversidade e qualidade no que resta afetado por ela. A adoção de práticas agrícolas mais sustentáveis e a recuperação de florestas na paisagem reduzem a incidência do fogo, constituindo uma solução importante para esse problema”, explica.
Sobre o mesmo aspecto, o pesquisador Toby Gardner, do Instituto Ambiental de Estocolmo (Suécia), recomenda cuidados com a vegetação remanescente. “As florestas tropicais correm risco se as iniciativas de conservação focarem exclusivamente nas extensões de floresta remanescentes, sem levar em conta o estado de saúde dessas áreas”, pontua.
O novo estudo também demonstra que espécies sob o risco máximo de extinção foram as mais vulneráveis a essas perturbações causadas por atividade humana. A pesquisadora Ima Vieira, do Museu Paraense Emilio Goeldi, informa que o Estado do Pará abriga mais de 10% das espécies de aves do planeta, muitas das quais endêmicas. “Nossos estudos demonstram que são justamente essas espécies as que estão sofrendo o maior impacto da ação antrópica, pois elas não sobrevivem em ambientes com esses níveis de perturbação”, revela.
Código Florestal e Saúde da floresta
Silvio Ferraz, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), lembra a importância do Brasil no cenário da conservação florestal mundial, já que o País possui 40% dos remanescentes de florestas tropicais da Terra.
O pesquisador da Embrapa Giampaolo Pellegrino observa que o trabalho permite realizar avaliações positivas sobre o Código Florestal. “É de reconhecimento internacional que, mesmo considerando questionamentos sobre sua última alteração, o Código Florestal Brasileiro é um instrumento essencial na preservação de áreas de importância ecológica para o País, além de regularizar e reduzir significativamente o desmatamento, e os próprios autores reforçam isso. Reduzir o desmatamento permitido a 20% é muito significativo, a ponto de a perda do valor de conservação provocada pelas perturbações internas e na paisagem das grandes áreas florestais remanescentes serem da mesma ordem da perda das áreas desmatadas com corte raso – o que certamente seria muito maior sem o Código”, diz Pellegrino.
Sobre os alertas do estudo, Giampaolo Pellegrino chama a atenção para o fato de que a função do Código é preservar os processos hidrológicos, conservar o solo e seus processos, assim como a biodiversidade, baseando-se num índice facilmente mensurável e de aplicação geral pelo País, a área preservada. Na visão do pesquisador da Embrapa, “o Código não deve ser a única política pública e essa é a grande contribuição do estudo, ou seja, alertar para um efeito que não era claro e quantificado e que demanda atenção do governo e da sociedade”.
Para o pesquisador Jos Barlow, da Universidade de Lancaster (Reino Unido) e principal autor do estudo, “o Brasil demonstrou uma liderança sem precedentes no combate ao desmatamento na última década e o mesmo nível de liderança é necessário agora para proteger a saúde das florestas restantes nos trópicos”.
O estudo publicado na Nature é fruto da Rede Amazônia Sustentável, um consórcio de instituições brasileiras e estrangeiras, coordenado pela Embrapa Amazônia Oriental, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade de Lancaster e Instituto Ambiental de Estocolmo. A RAS também tem parte do INCT Biodiversidade e Uso da Terra na Amazônia, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.